terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Aguinaldo Silva - Todos temos um passado...

Conhecido do grande público por ter escrito muitas das novelas de maior sucesso da Rede Globo de Televisão, como Roque Santeiro, Tieta, Senhora do Destino e Duas Caras, Aguinaldo Silva revelou em seu blog pessoal uma história comovente, onde conta eventos que lhe aconteceram quando tinha apenas 13 anos, quando foi humilhado, agredido e violentado na época em que estudava no Colégio Americano Batista do Recife.




O DIA EM QUE MORRI E NASCI DE NOVO!

Em 1957 o Colégio Americano Batista do Recife elegeu, com a mesma expectativa de sempre, sua Rainha da Primavera, como acontecia todos os anos: na semana que antecedia sua festa de aniversário o educandário sempre escolhia e coroava, pelo voto direto dos alunos, sua aluna mais popular e bela. Durante décadas funcionara desse modo. Mas naquela vez ocorreu um fato inédito: concorrendo à sua própria revelia com todas as belas candidatas, um garoto de treze anos é que acabou fragorosamente eleito: sim, fui eu mesmo.

Não, por favor, esperem: não se rejubilem ainda, pois a história é amarga, violenta e triste. E antes de ir adiante me deixem relembrar alguns antecedentes que me levaram a vivê-la.

Eu tinha treze anos.

O Colégio Americano Batista, ainda Baptista naquela época era – não sei se ainda é – um dos mais tradicionais do Recife. Por isso meu pai, um ex-frentista e balconista do único posto de gasolina da cidade de Carpina – a “Bomba do seu Firmino” – fez questão de me matricular nele quando nos mudamos pra lá.

Pois “seu” Joaquim Ferreira da Silva era assim: meu pai achava que só uma educação de excelência podia mudar o mundo... E o meu mundo não estava destinado a ser dos melhores.

Nós éramos pobres de Job; mal tínhamos como sobreviver. Mas “seu” Joaquim não descuidava do meu futuro. Antes de me colocar no C.A.B. (era assim que os alunos se referiam ao colégio), ele me fizera estudar o último ano do curso primário no Agnes Erskyne, um colégio de ricos. E antes disso, ainda em Carpina, me mantivera a duras penas na respeitada escola particular de Dona Isaura, uma lendária professora local, por cujos bancos passaram todos os meus contemporâneos filhos de privilegiados.

Eu tinha apenas uma vaga idéia dos sacrifícios que ele fazia pra me dar essa educação de alto nível. Mesmo assim tratava de não decepcioná-lo, e sempre lhe apresentava ótimos resultados.

Na escola de dona Isaura, e até no Agnes Erskyne, eu era criança demais e passara em brancas nuvens. Mas no C.A.B., já adolescente, logo fui notado. Eu era pobre, feio, esquisito... E a pior coisa de todas: era efeminado. Por tudo isso acabei eleito como vítima preferencial de todas as brincadeiras malvadas...

E foi assim que nós chegamos ao tal concurso.

O colégio era misto, mas separado por sexos. Havia a ala das meninas e a dos meninos, e todos os dias eles só se reuniam no mesmo lugar na hora do culto.

Num desses cultos, por votação direta, seria eleita a tal rainha.

E foi então que um dos meninos mais velhos, ao me ver passar com meu andar de cisne envergonhado durante o recreio, teve a idéia: “vamos votar no Aguinaldo!”

Pra meu desespero sua sugestão se propagou. E vingou de tal forma que, no dia da eleição, o assunto da minha “candidatura” era o mais comentado.

O Pastor Albérico, encarregado da apuração diante do auditório lotado de alunos, professores e funcionários, em nenhum momento citou meu nome. Mas lá no púlpito, cada vez que abria um voto do qual ele constava, tratava de colocá-lo acintosamente de lado. Até que, no final da apuração, pelo tamanho da pilha era mais do que evidente: fora eu o mais votado.

Várias vezes, durante aquela hora de humilhação e escárnio, eu desejei estar morto. Mas - que esperança - continuaria vivo... E sem saber que aquilo fora apenas o começo.

Logo depois da eleição – da qual foi declarada vencedora a menina que teve mais votos depois de mim – era o recreio. E mal a campainha tocou, já prevendo a onda de escárnio que se abateria sobre o meu lombo, saí correndo para o único local que considerava seguro: os banheiros.

Mas não cheguei a me trancar num deles, pois os meninos, excitados por conta da brincadeira, sentindo o gosto de sangue na boca, me perseguiram e me acuaram. Enquanto eu gritava de pavor, não houve nada que eles não me jogassem: pedras, paus, sapatos, terra, cadernos, canetas, livros, a meia porta de um dos banheiros que acabou sendo arrancada... Tudo isso numa gritaria infernal, que só foi interrompida a muito custo quando o Pastor Albérico, temendo o pior – um linchamento – chegou lá e gritou mais alto.

Enquanto ele tentava enquadrar aquele bando de adolescentes histéricos, eu escapei sem ser notado. Em prantos, saí do colégio e fui sentar num banco da Praça do Entroncamento, onde fiquei a soluçar, em estado de choque.

Lembrem-se: eu tinha treze anos.

Enquanto eu estava lá, sentado no banco da praça, num pranto convulso e descontrolado, um homem se aproximou de mim e perguntou:

“Por que choras, linda criança?”

Em vez de lhe responder eu chorei ainda mais alto.

E então ele me tomou pela mão e me levou para o seu quarto, numa pensão ali mesmo na praça. Mas lá, o que ele me deu não foi propriamente consolo.

Quando saí do quarto do homem não chorava mais, porém estava ainda mais arrasado. Um drama sem precedentes acabara de acontecer na minha vida. Eu passara por uma sucessão de sérios, pesados, irreversíveis agravos; mas não tinha ninguém com quem pudesse conversar sobre o fato.

Pior ainda: eu tinha que esconder tudo aquilo da minha família. Não podia chegar em casa e dizer: fui humilhado, espezinhado, quase linchado, violentado... Pois, quando eles me perguntassem: “por quê?!” Eu teria que responder: “porque sou pobre, feio, esquisito, e efeminado!”.

Não podia nem mesmo dizer ao meu pai que não ia mais voltar ao colégio pelo qual ele pagava tão caro e, portanto, no dia seguinte teria que retornar ao C.A.B. e lá continuar nos próximos meses, a enfrentar todas as provocações dos meus algozes.

Vaguei durante horas, desnorteado, arrasado, me perguntando o que fazer. Até que uma luz se fez e eu descobri que podia fingir, e que talvez isso até me permitisse ficar menos pobre, feio, esquisito e efeminado, e mais parecido com os outros.

Foi assim que, embora tivesse só treze anos, dei meu primeiro passo em direção à dissimulação e o cinismo, os dois pilares sobre os quais se apóia o nosso mundo.

Segui pela Avenida Conselheiro Rosa e Silva e fui pra casa, à rua do Cupim, 144, no bairro dos Aflitos. Lá encontrei Givaldo, um vizinho, adepto das teses de Lombroso (não sabem quem é? Procurem na Wikipédia), que certa vez, com a maior cara de pau, dissera a minha mãe que eu era um típico representante da sub-raça dos mulatos e explicara por quê:

“O cabelo dele é ruim!”

Sabendo que não era mais o mesmo eu entrei em casa. Mas minha mãe, dona Maria do Carmo Ferreira da Silva, que me recebeu à porta, não notou nada. Apenas perguntou:

“Por que demorou tanto?”

Ao que eu lhe respondi - e pela primeira vez eu fui cínico:

“Por causa do concurso da Rainha da Primavera no colégio... A turma saiu atrasada”.

Sentei à mesa. Comi, com a naturalidade de todos os dias, o meio peito de frango com rodelas de cará que minha mãe me serviu de almoço. E depois fui pro quarto cumprir minhas duas horas diárias de estudos caseiros... Aos quais, como se nada tivesse acontecido, tratei de me dedicar com afinco.

Isso mesmo, eu tinha treze anos...

E no dia seguinte, à hora de sempre, atendendo ao clamor da campainha, entrei na sala de aula do C.A.B. e ocupei o meu lugar de novo.

Ninguém falou comigo sobre o acontecido. Não houve qualquer comentário desairoso. O Pastor Albérico sequer olhou pra mim na hora do culto. E apenas o professor de inglês, chamado Fernando da Veiga, como sempre fora do seu feitio, quando me chamou ao quadro-negro ousou ser irônico comigo (eu escrevi “Y” em vez de “I”, querendo dizer: “eu”. E ele rosnou: “sendo como é você só podia ser burro!”)

Aos poucos eu soube: o caso provocara verdadeira convulsão na direção do colégio. Pensaram até em me expulsar como medida profilática. Afinal de contas, era eu o pobre, o feio, o esquisito e o efeminado, e por isso fora culpado de tudo. Mas como fazer isso e deixar sem punição os que quase me lincharam?

Assim, a história foi pura e simplesmente abafada. Isolado de todos, eu cumpri no C.A.B. mais um ano de estudos e concluí o ginásio.

Completei, afinal, quatorze anos. Nesse dia meu pai me chamou e disse:

“A partir de agora você vai trabalhar durante o dia, estudar à noite e pagar seus próprios estudos”.

Aceitei de bom grado. Saí logo à procura de emprego, e em poucos dias já estava trabalhando na zona do cáis, não num puteiro, mas numa agência de navegação, que alugava os serviços do rebocador “Mestre Antônio”. E então me matriculei para o curso Clássico em outro colégio caríssimo, o Salesiano.

A essa altura, mais só e introspectivo que nunca, eu já tinha - pasmem! – escrito dois livros. Um deles, “Redenção para Job”, reescrito dois anos depois, seria publicado em 1961, e então minha vida mudaria. E eu não precisaria que meu pai me dissesse isso pra concluir que, no que diz respeito à minha educação ele sempre estivera certo.

Pobre, feio, esquisito e efeminado: eu me considerava único... Até o dia em que, enquanto tomava um sundae na Confeitaria Confiança – pago com o produto do meu trabalho! -, eu conheci um garoto como eu, que se apresentou como “Fernando Maysa” (todos achavam que ele se parecia com a cantora, por causa dos enormes olhos verdes... mas pra mim era mais bonito).

Em poucos instantes nos tornamos amigos inseparáveis, eu lhe contei o que tinha acontecido comigo lá no C.A.B., e então ele me levou ao Quem-me-Quer, um jardim à beira-rio no centro do Recife, me apresentou à sua turma de garotos feios, esquisitos e efeminados como eu e disse:

“Aponta um de nós que não tenha passado por algo parecido”.

Eu tinha treze anos quando isso aconteceu. Vou fazer 65 agora. Durante 52 anos guardei essa história comigo. Por isso nunca fiz análise – pra não ter que deitar num sofá e contá-la a um estranho. Na verdade, a essa altura da minha vida eu até já a tinha esquecido.

Mas, da varanda de minha suíte do “Splendour of the Seas”, enquanto ele atracava no Recife, eu vi a zona do cáis à minha frente, e então me lembrei de tudo.

Mal desci do navio, peguei um táxi, pedi ao motorista: “me leva ao Colégio Americano Batista...” E ele fez isso. Lá, por trás do portão fechado, eu fiquei alguns minutos a olhar a mesma alameda de palmeiras pela qual eu passei em prantos naquele dia fatídico... E quase consegui me ver a seguir aquela via sacra de novo.

Pedi então ao motorista que me levasse à Rua do Cupim 144, e lá fiz questão de tirar fotos. A casa ainda é a mesma, só as grades mudaram, mas hoje ela funciona como escritório.

A seguir fui me encontrar com três jornalistas que estão escrevendo uma tese sobre a minha infância em Pernambuco e queriam que lhes desse uma entrevista. Foi então que, pela primeira vez nesses anos todos, tive vontade de contar essa história... Mas me contive e pensei:

“Se o fizer será no blog, quero que a turma de lá seja a primeira a tomar conhecimento disso”.

O prometido é agora cumprido. Estou aqui, nu diante de todos.

Antes de voltar para o navio eu vivi o grande evento do dia: a reunião e o almoço com minha família (irmão, cunhada, sobrinhos, sobrinhos-netos) a quem não via há alguns anos. Foi com eles a voejar ao meu redor num restaurante, no auge da satisfação e da felicidade, que afinal concluí: não sou mais feio, nem pobre, e muito menos esquisito.

Agora, efeminado...

Bom, a verdade é que de vez em quando ainda desmunheco. Mas acho que isso é destino!

No final do almoço, quase à hora de regressar para o navio, alguém me mostrou uma senhora numa mesa próxima: era dona Alba, uma antiga vizinha nossa da Rua do Cupim!

Eu não a reconheci, mas percebi desde que entrei no restaurante que ela ficou me olhando. Minha cunhada me levou até ela; a velha senhora me cumprimentou efusivamente, e disse duas frases que considerei lapidares.

A primeira foi: “Guina, como tu ficou grande!”

“Guina” era o meu apelido de Menino.

E a segunda, enquanto olhava extasiada para a minha cabeça, foi: “teu cabelo ficou bom!”

Essa última, se algum dia eu morrer – o que acho muito difícil -, quero que a escrevam, com uma pequena adaptação, no meu túmulo:

“O cabelo dele não apenas ficou bom, mas continuou melhorando”.


O CARA

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